Acabei de ler o livro Retrotopia, o último escrito por Zygmunt Bauman, o grande pensador da modernidade líquida, falecido em 2017. O livro retrata o fenômeno atual em que se tenta resgatar ideias e ideais do passado, como nacionalismo exacerbado, valores ultrapassados, como forma de se construir um futuro, na inclinação de tentar reviver uma zona de conforto daquilo que se conhece, por ter sido vivido. É uma nostalgia que revive utopias que nunca se tornaram efetivamente verdadeiras, muito menos poderão por igual motivo ser resgatadas. É uma espécie de medo do que poderá vir, no confronto do que existe de vivência, conceitos e experiências dentro de cada um.
Vemos, portanto, que nesta marcha à ré dos valores surge uma tentativa de desconstrução de verdades já estabelecidas socialmente e, por conseguinte, em parte, já aceitas, mas que incomodam e geram medo aos que se afivelam por um lado em valores dissimulados e hipócritas, muito ao gosto de vários líderes religiosos, bem como discurso pronto e formatado de acordo com as ondas e correntes surfadas por políticos.
A certa altura Bauman cita Svetlana Boym, professora de literatura eslava comparada em Harvard, quando afirma que esta onda nostálgica é um anseio emocional por uma comunidade com memória coletiva, uma espécie de desejo ardente de formação de grupos unidos em um mundo fragmentado por ideias. Entendemos, assim, os reverses que, por exemplo, temos visto na aceitação da teoria de gênero, visto que até o Supremo Tribunal Federal já havia feito a compreensão jurídica da união estável, bem como direitos de família a casais homoafetivos. Naturalmente que isto não tem nada a ver com ideologias político-partidárias, são, em verdade, posicionamentos pessoais de quem nunca aceitou o avanço civilizatório dos direitos civis.
Parece que se busca um mecanismo de defesa na reconstrução de falsos valores existentes na sociedade. Falsos porque vividos hipocritamente, como a família feliz, idealizada, mas nunca realizada. É isso que vemos em muitas promessas de retomadas de “valores” reconstrutivos da família ideal, como pano de fundo de ideologias difundidas nos dias atuais. Há uma disposição de se confundir questões verdadeiras, existentes no cerne da sociedade com ideologias extremistas, voltadas a visões fantasiosas do passado gerador de tantas repressões e usurpação da liberdade de ser. O novo mais uma vez assusta, e no lugar de covardes para o novo, usam a palavra conservador. Busca-se uma alternativa para a leitura de um presente perdido, ainda que só esteja diferente, gerando assim visões seletivas que têm sido plenamente manipuladas por interesses quase sempre inconfessáveis. Sigamos sem medo, mas atentos ao presente.
José Medrado é líder espírita, fundador da Cidade da Luz,
palestrante espírita e mestre em Família pela UCSal. Também é apresentador de rádio