Lá eu estava no centro do teatro, aguardando um amigo que foi estacionar o carro. Começou a me chamar a atenção, à medida que se aproximava do início do espetáculo, o público que chegava: pessoas pretas mais bonitas e ornadas que nas idas e vindas pelas ruas da nossa cidade. Não era, de forma alguma, festa de eleição de beleza negra ou algo que valha. Havia também uma diversidade aceita e vivenciada com carinhos e afagos entre pessoas enamoradas. Senti-me uma ilha, como desbotado que sou, em meio a um oceano de gente forte, de cabeça erguida e muita, muita beleza mesmo.
Estava no teatro Jorge Amado, aguardando o início do espetáculo Koanza, do Senegal ao Curuzu, com Sulivã Bispo. Espetáculo que traz a compreensão de um Brasil futuro, mas que o vemos no presente, sob certos aspectos, onde a sociedade, no tocante aos negros, ao candomblé, seus ritos e ancestralidade, são vilipendiados. Koanza traz a visão de um sistema em metamorfose nefasta pela conquista do poder político sedimentado na religião. Sulivã expõe, com rara clareza, a leitura estrutural das disposições que constituem uma permanente desconstrução desde sempre dos princípios ancestrais do candomblé, através da leitura do sistema vigente (futuro) e de suas oposições: sagrado e profano; distante e Fpróximo; ignorância e conhecimento; desvioetradição. Tudo repassado com momentos de humor.
Em verdade, eu vi que se trata de uma proposta de reapropriação de uma cultura, que se tenta desqualificar, por uma opressão política e ideológica cristã. Há uma linha de perfeita lógica gerada, em uma espécie de africanidade futura brasileira, onde a personagem busca desativar a firmada consequência do assédio cristão sobre os valores culturais e religiosos do povo africano, de um Brasil que se esquadrinha para um lamentável futuro próximo, se nada for feito. Pode ser profético.
O texto extraordinariamente passado por Sulivã é irreparável, ele dá vida forte a uma yialorixá rica, poderosa, mas de raízes em suas origens. Sulivã está perfeito em sua performance. Texto bem apreendido e passado com a naturalidade de quem está de fato no personagem. Gera inegavelmente empatia e projeção (no sentido yunguiano). Sulivã já é do mundo. Ator completo, provou isto em sua interpretação. O final foi de arrancar lágrimas.
A peça precisa ser vista por todos, inclusive quem vem em turismo à Bahia, pois é um brado sobre a cultura negra e bem coloca o paroxismo da perseguição religiosa, sem descambar para argumentos clichês. O espetáculo afasta do palco as infelizes práticas, tidas como educativas, que ainda insistem em colocar asreligiões de matriz africana, os seus sacerdotes e seguidores no lugar desrespeitoso do exótico e do folclórico.
José Medrado possui múltiplas faculdades mediúnicas, é conferencista espírita, tendo visitado diversos países da Europa e das Américas, cumprindo agenda periódica para divulgação da Doutrina, trabalhos de pintura mediúnica e workshops. Além disso, também escreve para o BNEWS.