No bairro de Pituaçu, na rua Barreto Pedroso, uma construção de esquina com bandeirinhas coloridas em cima do muro chama a atenção de quem passa. Não há pichações nas paredes, não há ambulantes na calçada e as portas estão sempre abertas. Com o letreiro escrito Cidade da Luz – Centro Espírita Cavaleiros da Luz, a curiosidade do que se trata aquela construção logo seesvai,mas engana-se quem pensa que aquele localse resume a um centro de doutrinação.
Hoje, a Cidade da Luz é um complexo assistencial diverso.No total, são três pavilhões centrais: o Centro de Cultura e Arte Pai João, onde oferecem cursos de todo tipo para crianças, adultos e idosos; o Pavilhão Francisco de Assis, que funciona a área administrativa e abriga o Ambulatório Dr. Bezerra de Menezes; e o Centro Espírita Cavaleiros da Luz, focado na parte doutrinária. Há, ainda, um quarto pavilhão mais ao fundo, onde funcionaaEscolaMunicipalCarlosMurion, fundada em 2004 com parceria da Prefeitura Municipal de Salvador.
Mas a história da Cidade da Luz é antiga. Surgiu em 1977, quando seu fundador,José Medrado,tinha apenas 17 anos. Ele lembra que sua infância foi difícil e houve momentos que chegou a passar fome. Medrado morava na Ladeira da Preguiça com o pai e a mãe e aos 10 anos passou a trabalhar como lavador de carros. Naquela época já existia o desejo de que um dia pudesse ajudar outras crianças que, assim como ele, passavam por dificuldades.
Antes disso, ele já experienciava um processo mediúnico muito forte – passou a perceber a presença da vó paterna aos 7 anos. Para aquela criança, esses eram momentos assustadores. Os pais de Medrado não eram espíritas, seu pai inclusive fazia parte da Irmandade da Nossa Senhora da Conceição da Praia, e por isso lembra que passou por uma repressão grande em casa.“Meu pai dizia que eu estava desassossegando o espírito da mãe dele. Eu até dizia que era elequemme desassossegavao espírito”, brinca o médium.
Aos 15 anos, após entrar no Colégio da Polícia Militar, as coisas começam a mudar para o jovem Medrado. Foi nesse período que ele teve contato com o espiritismo pela primeira vez, ao ouvir de um professor sobre sintomas de mediunidade. “Até então eu tinha medo, porque ouvia pessoas conversando com minha mãe que podia ser esquizofrenia”. Num ato de coragem, ele contou ao professor Benedito Araújo que sentia aquelas coisas desde muito novo. Foi então que recebeu um convite para visitar um centro na Baixa do Bonfim.
A partir disso, Medrado dá início ao seu desenvolvimento mediúnico. Aos 17 anos, ao lado do professor Benedito Araújo, funda um grupo de orações. Esse grupo foi crescendo e hoje é o que conhecemos como Cidade da Luz.Mas no começo,sem sede, eles realizavam as atividades doutrinárias visitando as casas dos membros do grupo e só alguns anos depois começaram a se estabelecer em locais alugados, como no Uruguai, Amaralina e Caminho das Árvores. Durante todo esse processo, Medrado se dividia no trabalho em Simões Filho e nas faculdades de Letras e Filosofia.Hoje, o médium também é mestre em Família na Sociedade Contemporânea.
“Fazíamos esse trabalho, no começo, aos finais de semana. Depois passamos a fazer durante a semana e assim fomos ultrapassando novas fronteiras, sempre com o foco em minimizar, entendendo que o que a gente estava fazendo ali só mitigava, não resolvia questões”, diz Medrado.
Todo esse trabalho ocorre de formai ninterrupta durante esses anos sem qualquer tipo de aporte financeiro por parte do poder público ou de empresas privadas. Tudo funciona por meio do trabalho mediúnico que Medrado realiza: desde pinturas, esculturas e livros escritos por ele, além das doações das pessoas. E para manter a Cidade da Luz com tantas atividades, eles contam com um numeroso time de voluntários.
Medrado revela que atualmente são cerca de 500 voluntários, número que já foi ainda maior antes da pandemia. Segundo ele, houve uma evasão durante o período em que a Cidade da Luz esteve fechada por conta do vírus da Covid-19. Mesmo assim, o grande número mostra que ainda há muitas pessoas dispostas a fazer o complexo funcionar.
Uma dessas pessoas é dona Lizete Aragão, a voluntária com maior idade na Cidade da Luz, 89 anos. Ela acompanha Medrado há 27 anos, desde quando ele comandava apenas um centro no Caminho das Árvores. “Comecei lá. Quando veio para cá, acompanhei. Quando fiquei viúva, me dediquei à Cidade”, conta Lizete, que por muito tempo foi responsável pela cantina.
Ela revela que durante todos esses anos só recebeu benefícios no local. Conta, inclusive, que há um mês estava sentido uma forte dor e “pediu” uma cura ao Dr. Bezerra – médico que dá o nome ao centro ambulatório da Cidade da Luz e expoente da Doutrina Espírita, conhecido como O Médico dos Pobres.
“Fiz uma cirurgia espiritual e fiquei boa, graças a Deus. Aqui é só benefício para quem chegar”, afirma Lizete. Ela também garante que, mesmo próxima dos 90 anos, não pensa em deixar de ser voluntária. “Se eu recebo benefício, vou para onde?”, questiona.
Oitenta anos mais nova, Anna Clara Salomão, a Cacá, é a voluntária com menor idade na Cidade da Luz, 9 anos. Cacá começou o trabalho como voluntária no ano passado, quando na primeira visita comospaisquestionouquemeram as pessoas que utilizavam aqueles coletes e crachás. Quis ser uma delastambém. “Eu gosto das pessoas daqui, gostei de ver as pessoas ajudando no som, na cabine, e queria ser voluntária”, explica a jovem.
Cacá,às vezes, realizaatémesmo a oração de abertura a convite de Medrado. Ela diz que em alguns momentos chega a ficar nervosa, com medo de ser perguntada sobre algo que não sabe responder, mas conta que gosta de fazer as orações mesmo assim.
O pai de Cacá, Rômulo Salomão, já foi voluntário antes. A mãe dela, Rosana, lembra também que a Cidade da Luz foi o local do primeiro encontro dos dois. “Frequentamos outro lugar com nossa família, mas viemos numa homenagem e decidimos trazer Cacá para conhecer as meninas e agora estamos aqui sempre”, conta Rosana.
A responsável pelo Centro de Cultura e Arte Pai João, Eliana Inês, a Lili, se dedicava antes ao abrigo de órfãos que funcionava no espaço onde hoje é o centro cultural. O abrigo foi encerrado em 2016 e, nas palavras de Lili, ele era um “um trabalho de reconstrução de vínculos da criança”. Para ela, o centro cultural chega para substituir isso como um “um trabalho de fortalecimento de vínculos”.
Cursos Hoje, o Centro de Cultura e Arte Pai João oferece aulas de balé, hip-hop, jiu-jitsu e capoeira, além de uma parceria como Sesc, que oferece diversos cursos semestralmente de acordo com a demanda da comunidade, focado nas mães, mulheres e interessados. No local, também são realizados trabalhos de atendimentos psicológicos numa parceria com a Unifacs, que disponibiliza um grupo de psicólogos, professores e estagiários da universidade para atendimento no local, além de outras demandas.
Lili conheceu os trabalhos da Cidade da Luz também há bastante tempo,quando tinha17anos.Hoje já são mais de 42 anos em atuação. “Eu ganhei muito aqui porque Medrado tem uma forma muito libertadora de propor o trabalho, de lidar com a gente. Aprendemos essa coisa de libertação. Não é um trabalho que lhe aprisiona, que lhe põe pesos. Você se liberta de um monte de coisas, inclusive de você mesmo”, explica Lili sobre o trabalho como voluntária.
De aluno a professor, o jovem de 21anos Rodrigo Ferreira chegou na Cidade da Luz em 2017. Sem condições financeiras para fazer um curso de dança, foi no centro cultural que ele teve o primeiro contato com o hip-hop. Hoje, trabalhando para o Studio A, que tem uma parceria com a Cidade da Luz. Rodrigo foi convidado a representar o estúdio de dança como professor nolocalem que começou sua carreira.
“Fiqueisem palavras quando recebi essa oportunidade porque foi onde eu comecei, de onde eu vim. Não tive como recusar, aceitei na hora, e agora estou fazendo o possível para passar o melhor para os alunos daqui assim como eu recebi quando cheguei, conta Rodrigo.
Da nova geração, estão Simão Juan da Silva, de 15 anos, e sua irmã Samara Julia da Silva, de 10. Ambos fazem aula de jiu-jitsu na Cidade da Luz.A mãe deles, Tatiane da Silva Santos, também participa de grupos, palestras e cursos oferecidos na Cidade da Luz.
“Participamos de todo tipo de atividades. Isso nos ajuda muito, principalmente psicologicamente. Por ser mãe solteira, aqui sempre tive apoio. Me deu alegrias com eles dois e elestambém estão sempre satisfeitos”, diz Tatiane.
Saúde: No Ambulatório Dr. Bezerra de Menezes, inaugurado em 2001, duas Sandras cuidam do local. No ambulatório clínico, a pediatra Sandra Pugas é a coordenadora médica;já no ambulatório odontológico, a dentista Sandra Araújo éacoordenadora.Há19anos na Cidadeda Luz, Pugas lembra que foi a primeira apôr o nome na lista para ser voluntária do ambulatório clínico.
“Não tem uma atividade que eu tenha feito nesse período que tenha sido mais ou menos. É tudo muito intenso”, resume. Ela coordena esse serviço que afirma ser livre para que os médicos ajustem às suas rotinas. “Cada médico diz seu horário, diz o número de pacientes que pode atender, e eles são agendados”, explica.
Sandra Araújo conheceu a Cidade da Luz há 20 anos e seu principal objetivo era o do estudo. Por todos esses anos, ela participou dos grupos de estudo do evangelho, conhecendo a doutrina, e só há pouco tempo passou a fazer parte do time de voluntários.
“Meu dia de atender,segundade tarde, é o melhor dia da semana para mim. Quando eu venho, venho com vontade de trabalhar. É uma frase clichê, mas quem ajuda é mais ajudado”, diz a dentista.
Sandra Pugas também participa do voluntariado com dependentes químicos e outros adictosrealizado às quintas-feiras. Segundo Medrado, esse foi um dos programas mantidos mesmo durante o auge da pandemia, quando a Cidade da Luz esteve fechada.
Um dos beneficiados desse programa foi Sandro Almeida Souza, de 38 anos. Com 18 anos, ele teve o primeiro contato com a Cidade da Luz, mas, segundo ele, ainda não estava no seu momento. Quando voltou, há dois anos e meio, procurando atendimento para o álcool e a maconha, foi reconhecido pois seu nome ainda estava no caderno que o complexo mantém.
“É um projeto que acolhe todos os dependentes químicos, não só de drogas, mas qualquer coisa que seja viciosa. Mulheres demais, vida promíscua. Busquei para sair da maconha e em dois meses e meio parei de fumar.Não acreditava que ia parar de beber, mas depois de quatro ou cinco meses engajado nesse projeto,comecei a pensarem parar, nos finais de semana já não bebia ou diminuía, e há dois anos não bebo mais”, conta Sandro.
Hoje ele é voluntário da casa, trabalha no Busão da Solidariedade, projeto maisrecente da Cidade da Luz. O Busão é um ônibus totalmente adaptado com cinco boxes de banho privativos, sendo um para cadeirantes.O ônibus sai pelas ruas de Salvador oferecendo banho, roupa limpa, alimento e corte de cabelo.
“Damos um pouco de dignidade a pessoas que estão em situação de rua. Quando a gente identifica processos que podemos ajudar, trazemos para a sede. Pessoas que vieram de fora e não conseguiram se estabelecer aqui, damos um jeito para quer etorne me pessoas que precisam de um atendimento médico”, explica Medrado.
O Busão sai sempre às quartas-feiras, mas durante o resto da semana, fica na sede da Cidade da Luz e funciona ali mesmo, para quem chegar e precisar.
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